Na França, a Alta Costura é um orgulho nacional. O termo
“Haute Couture” é “patenteado” pela câmara sindical do segmento. Para conseguir
se incluir nesse seleto grupo de ateliers extremamente refinados, uma série
longa de requisitos deve ser preenchida. Basicamente, tudo deve ser feito
inteiramente a mão, as clientes devem concluir algumas sessões de prova das
peças que vão comprar, entre muitas outras regras. Pouquíssimas pessoas no
mundo tem dinheiro o suficiente para realmente consumir Alta Costura. É por
esse motivo que, em geral, ela não é mais uma atividade diretamente lucrativa.
O status quo que a Alta Costura agrega para a maison é o que realmente vende.
Vende perfume, acessórios e entre outros produtos mais acessíveis que atingem
vendas estrondosas e sustentam o mercado do mais alto luxo.
Pela relação histórica que a Alta Costura tem com a
aristocracia, sua produção estética sempre se aproximou muito dos valores
cultivados por essa parte da sociedade. Alguns espasmos de criatividade
transformaram alguns paradigmas no decorrer do século XX, mas em termos de
transgressão verdadeira, apenas uma maison de dentro da Alta Costura vem a
mente de imediato: Maison Martin Margiela.
Os três M’s tem uma longa história de coragem e bons
questionamentos a se fazer. O belga que carrega o nome da marca se formou em
1979 na Royal Academy of Fine Arts da Antuérpia. Ele começou trabalhando para o
famoso Jean Paul Gaultier, e, somente em 1989 ele lançou a sua
primeira coleção. O estilista e criador ficou famoso pelo seu anonimato, por
mais paradoxal que isso possa parecer. Ele nunca saiu ao final dos desfiles e
jamais se deixou ser fotografado a não ser uma vez em que o New York Times
conseguiu publicar uma foto sua. A etiqueta da marca é uma série de números que
representam qual tipo de produção e/ou coleção a peça em questão provém. O logo
em si, não existe, apesar de que os quatro pontos que costuram a etiqueta e
aparecem pelo lado de fora já se tornaram, de certa forma, uma marca
registrada.
As provocações já começam por aí. O que realmente faz com
que uma roupa seja valorizada? Essa é a pergunta motriz que direciona toda a
maneira como a MMM desenvolve sua trajetória. Seria a logomarca? Seriam os
materiais? Seria o tempo gasto na produção de cada peça? Em diferentes
momentos, a maison parece implicar com algumas dessas perguntas. Por vezes, o
tradicional bordado é feito com materiais que são quase sucata, totalmente sem
valor. Os tecidos podem aparecer plastificados, vulgares, urbanos, etc. As
formas, em muitos casos, deixam a funcionalidade de lado, são apenas
explorações volumétricas por sobre o suporte do corpo humano.
Deve-se considerar que esse conceito de desconstrução surge
na moda, mais especificamente com o audacioso trabalho da estilista Rei Kawakubo
em sua marca Comme des Garçons no decorrer da década de 1980. Contudo, por mais desafiadora e importante que
sua criatividade foi - e ainda é - para anunciar a chegada da estética do “feio” na moda, ela
fez isso no meio do prêt-a-porter que nasceu sob o auspício da modernidade
sessentista nas mãos dos corajosos Pierre Cardin e Yves Saint Laurent que deram
espaço a uma juventude que vivia, até então, aprisionada entre as roupas
infantis e as adultas.
A Alta Costura sempre foi um espaço mais tradicional e, além
disso, cheio de regras sobre como se deve ser uma coleção e de que forma as
peças dela devem ser feitas. Portanto, ser ousado dentro desse contexto é uma
missão ainda mais difícil e é esse o mérito que a MMM alcança com sua linha
dita “Artisanal”.
A Maison Martin Margiela fez sua carreira durante os anos
1990 – época em que um sexteto de estilistas belgas ganhou destaque na cena
parisiense com novas e plurais propostas para uma moda de ressaca pela grande
noitada que foi a década de 1980 – enquanto o estilista ainda dirigia a marca.
Em outubro de 2009 foi oficializada a saída de Margiela de sua própria marca –
notícia, anteriormente, calcada em rumores. Atualmente, um grupo de estilistas
continua com o trabalho na Maison levando o mesmo conceito com uma abordagem
mais jovial e talvez até mais comercial, mas, ainda assim, muito mais ousada do que a maioria das marcas da Alta Costura.
No próprio nome da linha de Alta Costura da maison já se
pode entender que o que está realmente sendo valorizado é o trabalho, tanto na questão
da produção e costura, como também na do desafio intelectual. A MMM traz, coleção
após coleção, diversas referências culturais e, acima de tudo, um trabalho
manual primoroso, apesar de, quase sempre, feito com materiais e propostas que
fogem absolutamente do convencional.
Nessa última coleção, o circo dos anos 1930 se mistura com o
design da Bauhaus e uma série de elementos étnicos entram em cena juntamente às
referências de tatuagens de marinheiro, mais especificamente do tatuador Sailor
Jerry. O desfile começa com recortes de uma tapeçaria muito valiosa costurada a
um vestido que parece ser feito de algodão de camiseta. Os brilhos estão
presentes nessa coleção mas nunca com aquela mera função decorativa e opulenta.
Eles decoram pontualmente casacos amplos, quase mantôs de tão grandes, ou são
bordados em corpetes que desenham tatuagens nos corpos das modelos. O
bordado-sucateiro também apareceu em cabeças e vestidos nos colocando de novo
em frente ao paradoxo que é uma peça extremamente bem trabalhada, mas feita com materiais tão inusitados.
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