sábado, 8 de março de 2014

O TERRÍVEL É SUBLIME


Na França, a Alta Costura é um orgulho nacional. O termo “Haute Couture” é “patenteado” pela câmara sindical do segmento. Para conseguir se incluir nesse seleto grupo de ateliers extremamente refinados, uma série longa de requisitos deve ser preenchida. Basicamente, tudo deve ser feito inteiramente a mão, as clientes devem concluir algumas sessões de prova das peças que vão comprar, entre muitas outras regras. Pouquíssimas pessoas no mundo tem dinheiro o suficiente para realmente consumir Alta Costura. É por esse motivo que, em geral, ela não é mais uma atividade diretamente lucrativa. O status quo que a Alta Costura agrega para a maison é o que realmente vende. Vende perfume, acessórios e entre outros produtos mais acessíveis que atingem vendas estrondosas e sustentam o mercado do mais alto luxo.



Pela relação histórica que a Alta Costura tem com a aristocracia, sua produção estética sempre se aproximou muito dos valores cultivados por essa parte da sociedade. Alguns espasmos de criatividade transformaram alguns paradigmas no decorrer do século XX, mas em termos de transgressão verdadeira, apenas uma maison de dentro da Alta Costura vem a mente de imediato: Maison Martin Margiela.

Os três M’s tem uma longa história de coragem e bons questionamentos a se fazer. O belga que carrega o nome da marca se formou em 1979 na Royal Academy of Fine Arts da Antuérpia. Ele começou trabalhando para o famoso Jean Paul Gaultier, e, somente em 1989 ele lançou a sua primeira coleção. O estilista e criador ficou famoso pelo seu anonimato, por mais paradoxal que isso possa parecer. Ele nunca saiu ao final dos desfiles e jamais se deixou ser fotografado a não ser uma vez em que o New York Times conseguiu publicar uma foto sua. A etiqueta da marca é uma série de números que representam qual tipo de produção e/ou coleção a peça em questão provém. O logo em si, não existe, apesar de que os quatro pontos que costuram a etiqueta e aparecem pelo lado de fora já se tornaram, de certa forma, uma marca registrada.



As provocações já começam por aí. O que realmente faz com que uma roupa seja valorizada? Essa é a pergunta motriz que direciona toda a maneira como a MMM desenvolve sua trajetória. Seria a logomarca? Seriam os materiais? Seria o tempo gasto na produção de cada peça? Em diferentes momentos, a maison parece implicar com algumas dessas perguntas. Por vezes, o tradicional bordado é feito com materiais que são quase sucata, totalmente sem valor. Os tecidos podem aparecer plastificados, vulgares, urbanos, etc. As formas, em muitos casos, deixam a funcionalidade de lado, são apenas explorações volumétricas por sobre o suporte do corpo humano.

Deve-se considerar que esse conceito de desconstrução surge na moda, mais especificamente com o audacioso trabalho da estilista Rei Kawakubo em sua marca Comme des Garçons no decorrer da década de 1980. Contudo, por mais desafiadora e importante que sua criatividade foi - e ainda é - para anunciar a chegada da estética do “feio” na moda, ela fez isso no meio do prêt-a-porter que nasceu sob o auspício da modernidade sessentista nas mãos dos corajosos Pierre Cardin e Yves Saint Laurent que deram espaço a uma juventude que vivia, até então, aprisionada entre as roupas infantis e as adultas.

A Alta Costura sempre foi um espaço mais tradicional e, além disso, cheio de regras sobre como se deve ser uma coleção e de que forma as peças dela devem ser feitas. Portanto, ser ousado dentro desse contexto é uma missão ainda mais difícil e é esse o mérito que a MMM alcança com sua linha dita “Artisanal”.

A Maison Martin Margiela fez sua carreira durante os anos 1990 – época em que um sexteto de estilistas belgas ganhou destaque na cena parisiense com novas e plurais propostas para uma moda de ressaca pela grande noitada que foi a década de 1980 – enquanto o estilista ainda dirigia a marca. Em outubro de 2009 foi oficializada a saída de Margiela de sua própria marca – notícia, anteriormente, calcada em rumores. Atualmente, um grupo de estilistas continua com o trabalho na Maison levando o mesmo conceito com uma abordagem mais jovial e talvez até mais comercial, mas, ainda assim, muito mais ousada do que a maioria das marcas da Alta Costura.

No próprio nome da linha de Alta Costura da maison já se pode entender que o que está realmente sendo valorizado é o trabalho, tanto na questão da produção e costura, como também na do desafio intelectual. A MMM traz, coleção após coleção, diversas referências culturais e, acima de tudo, um trabalho manual primoroso, apesar de, quase sempre, feito com materiais e propostas que fogem absolutamente do convencional.



Nessa última coleção, o circo dos anos 1930 se mistura com o design da Bauhaus e uma série de elementos étnicos entram em cena juntamente às referências de tatuagens de marinheiro, mais especificamente do tatuador Sailor Jerry. O desfile começa com recortes de uma tapeçaria muito valiosa costurada a um vestido que parece ser feito de algodão de camiseta. Os brilhos estão presentes nessa coleção mas nunca com aquela mera função decorativa e opulenta. Eles decoram pontualmente casacos amplos, quase mantôs de tão grandes, ou são bordados em corpetes que desenham tatuagens nos corpos das modelos. O bordado-sucateiro também apareceu em cabeças e vestidos nos colocando de novo em frente ao paradoxo que é uma peça extremamente bem trabalhada, mas feita com materiais tão inusitados.

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