Dentro do seu peito sentiu alguém ficar assustado com
aquele fenômeno. Contudo, esse alguém ou essa parte de seu ser não se
manifestou externamente. Sua expressão manteve-se estática. Observava aquele
horror e encarava-o como uma manifestação natural. A sua natureza a assustava,
mas ela continuou quieta. Aos poucos o terror foi se esvaindo e dando lugar a
um conformismo alienante. Ela não se importava mais, foi se entregando aquele
cabelo que crescia involuntária e vagarosamente de seu couro cabeludo. Seus
fios nunca pareceram tão fortes. Ela decidiu tocar os cabelos novamente pela
primeira vez. Tocou a virgindade dos novos folículos próximos à cabeça.
Sentiu-se exposta, auto-flagelada, mas sentiu prazer. Todo o arrepio que
poderia se espalhar deliciosamente por todo seu corpo concentrava-se nos fios
de cabelo que, certamente, agora tinham terminações nervosas fervorosas. Ela
sentia as pontas dos seus fios, era como se todo o cabelo tivesse adquirido
tato. Ao mesmo o seu corpo foi perdendo esse sentido: amolecia e formigava das
extremidades até os órgãos em uma cadência rítmica e intensa, apesar de
demorada e insistente.
Em um ímpeto de coragem decidiu levantar-se. Rapidamente,
colocou os pés no chão e impulsionou seu corpo contra eles para que se
colocasse ereta, dona de si. Uma fortíssima tontura a fez lembrar de inalar o
ar rarefeito de seu banheiro desorganizado porém limpo e lembrou-a também da
ilusão que é tentar domar a si mesma. Novamente, ela se punha submissa a uma
força interior maior que seu próprio ser. Seus cabelos não embaraçavam mais, as
mechas tornaram-se aglomerações escorregadias de fios e dançavam entre si desde
o tango até a valsa. Essa movimentação intensificava a tontura. Apesar de
alguns espasmos de equilíbrio, seu labirinto parecia querer tomar cada uma das
mechas individualmente como um ponto de sustentação. Essa enganação cognitiva
que seu corpo desistido de si a impunha fez com que ela racionalmente se
segurasse na porcelana branca da pia do banheiro. Concentrou seus esforços para
fazer com que seu corpo entendesse que a mão era agora o centro desejado.
Conseguiu se manter em pé finalmente. Conseguiu até mesmo andar, mas tudo ainda
continuava girando. Ela não sabia mais para onde ia, mas foi. Sem pensar, foi.
Andou pelos caminhos tortos e desequilibrados do interior de si ao seu redor.
Queria desesperadamente chegar a algum lugar, e enquanto perdia tempo
desejando, sentia dois pontos nervosos e altamente sensitivos de seu corpo de
tocarem. O bico dos seus seios tocava a ponta de seus cabelos que, ao crescer,
já estavam chegando naquela região. Cambaleava ao andar por seu minúsculo
apartamento que parecia enorme agora. Cada passo eram quilômetros e esses
quilômetros eram cansativos e insuperáveis. Cada passo era uma derrota
vitoriosa, uma interiorização aberta, uma dor latente e prazerosa.
Caiu no chão, e de novo a gravidade foi impiedosa. Seu
cabelo pendia de sua cabeça e pesava muitos quilos. Como se seu corpo estivesse
em chamas, ela se permitiu esparramar seu corpo no chão e rolar naquela poeira
como se essa entrega ainda maior a tontura que sentia fosse derrotá-la em uma
contradição de causa e efeito. O toque das mechas de seu cabelo deslizava por
seu corpo agora entornado por ele até pouco abaixo do seio. Começava ali um
processo metamórfico em que o tempo passava cada vez mais devagar. Ela tocava
as horas, sentia os minutos e ouvia o estalar dos segundos no crepitar vagaroso
que se dá quando fios de cabelo são pressionados entre si. Encostou a nuca no
chão e arqueou as costas, separando seus seios e deixando que o cabelo saísse
de cima de si e se deitasse ao redor de sua cabeça como uma aura. Suas
vértebras estralaram nesse movimento e no exato momento do estralo, ela se
virou e ficou de bruços. Sem muito controle do que fazia, bateu com o queixo
nos tacos de madeira que cobriam o chão de seu apartamento. Sentiu a dor mas a
ignorou. Anestesiou-se com o arrepio que seus cabelos estavam lhe causando.
Deixou-se dominar por ele de tal forma que o próprio cabelo escolheu
auxiliá-la. Concentrou seus esforços nervosos para deixar de sentir o queixo
que sangrava delicadamente em gotas manchadas e pesadas.
O cabelo agora tocava sua cintura, e se movimentava ao
redor dela. Enroscava-se em seu corpo como se a quisesse prender. Ela decidiu
que iria tentar dormir ali mesmo, deitada no chão sujo daquele apartamento. Sugou
toda a ignorância que cabia dentro de seus pulmões. Inspirou e expirou a alienação
em um bocejo doentio no qual seu maxilar se abriu como que para abocanhar
alguma presa viva e desprevenida. Inalou uma dose dupla de silêncio pelas suas
narinas delicadas, mas barulhentas. Destacou um pedaço de sua lógica. Quebrou
um detalhe do vitral da racionalidade que aos poucos foi cedendo espaço a uma
luz. Uma luz roxa, tensa e inebriante que cercou sua consciência enquanto ela
pôde, misticamente, se ausentar de si.
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