sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

CONTO: CABELO - PT.2 - FINAL

Dentro do seu peito sentiu alguém ficar assustado com aquele fenômeno. Contudo, esse alguém ou essa parte de seu ser não se manifestou externamente. Sua expressão manteve-se estática. Observava aquele horror e encarava-o como uma manifestação natural. A sua natureza a assustava, mas ela continuou quieta. Aos poucos o terror foi se esvaindo e dando lugar a um conformismo alienante. Ela não se importava mais, foi se entregando aquele cabelo que crescia involuntária e vagarosamente de seu couro cabeludo. Seus fios nunca pareceram tão fortes. Ela decidiu tocar os cabelos novamente pela primeira vez. Tocou a virgindade dos novos folículos próximos à cabeça. Sentiu-se exposta, auto-flagelada, mas sentiu prazer. Todo o arrepio que poderia se espalhar deliciosamente por todo seu corpo concentrava-se nos fios de cabelo que, certamente, agora tinham terminações nervosas fervorosas. Ela sentia as pontas dos seus fios, era como se todo o cabelo tivesse adquirido tato. Ao mesmo o seu corpo foi perdendo esse sentido: amolecia e formigava das extremidades até os órgãos em uma cadência rítmica e intensa, apesar de demorada e insistente.

Em um ímpeto de coragem decidiu levantar-se. Rapidamente, colocou os pés no chão e impulsionou seu corpo contra eles para que se colocasse ereta, dona de si. Uma fortíssima tontura a fez lembrar de inalar o ar rarefeito de seu banheiro desorganizado porém limpo e lembrou-a também da ilusão que é tentar domar a si mesma. Novamente, ela se punha submissa a uma força interior maior que seu próprio ser. Seus cabelos não embaraçavam mais, as mechas tornaram-se aglomerações escorregadias de fios e dançavam entre si desde o tango até a valsa. Essa movimentação intensificava a tontura. Apesar de alguns espasmos de equilíbrio, seu labirinto parecia querer tomar cada uma das mechas individualmente como um ponto de sustentação. Essa enganação cognitiva que seu corpo desistido de si a impunha fez com que ela racionalmente se segurasse na porcelana branca da pia do banheiro. Concentrou seus esforços para fazer com que seu corpo entendesse que a mão era agora o centro desejado. Conseguiu se manter em pé finalmente. Conseguiu até mesmo andar, mas tudo ainda continuava girando. Ela não sabia mais para onde ia, mas foi. Sem pensar, foi. Andou pelos caminhos tortos e desequilibrados do interior de si ao seu redor. Queria desesperadamente chegar a algum lugar, e enquanto perdia tempo desejando, sentia dois pontos nervosos e altamente sensitivos de seu corpo de tocarem. O bico dos seus seios tocava a ponta de seus cabelos que, ao crescer, já estavam chegando naquela região. Cambaleava ao andar por seu minúsculo apartamento que parecia enorme agora. Cada passo eram quilômetros e esses quilômetros eram cansativos e insuperáveis. Cada passo era uma derrota vitoriosa, uma interiorização aberta, uma dor latente e prazerosa.
Caiu no chão, e de novo a gravidade foi impiedosa. Seu cabelo pendia de sua cabeça e pesava muitos quilos. Como se seu corpo estivesse em chamas, ela se permitiu esparramar seu corpo no chão e rolar naquela poeira como se essa entrega ainda maior a tontura que sentia fosse derrotá-la em uma contradição de causa e efeito. O toque das mechas de seu cabelo deslizava por seu corpo agora entornado por ele até pouco abaixo do seio. Começava ali um processo metamórfico em que o tempo passava cada vez mais devagar. Ela tocava as horas, sentia os minutos e ouvia o estalar dos segundos no crepitar vagaroso que se dá quando fios de cabelo são pressionados entre si. Encostou a nuca no chão e arqueou as costas, separando seus seios e deixando que o cabelo saísse de cima de si e se deitasse ao redor de sua cabeça como uma aura. Suas vértebras estralaram nesse movimento e no exato momento do estralo, ela se virou e ficou de bruços. Sem muito controle do que fazia, bateu com o queixo nos tacos de madeira que cobriam o chão de seu apartamento. Sentiu a dor mas a ignorou. Anestesiou-se com o arrepio que seus cabelos estavam lhe causando. Deixou-se dominar por ele de tal forma que o próprio cabelo escolheu auxiliá-la. Concentrou seus esforços nervosos para deixar de sentir o queixo que sangrava delicadamente em gotas manchadas e pesadas.
O cabelo agora tocava sua cintura, e se movimentava ao redor dela. Enroscava-se em seu corpo como se a quisesse prender. Ela decidiu que iria tentar dormir ali mesmo, deitada no chão sujo daquele apartamento. Sugou toda a ignorância que cabia dentro de seus pulmões. Inspirou e expirou a alienação em um bocejo doentio no qual seu maxilar se abriu como que para abocanhar alguma presa viva e desprevenida. Inalou uma dose dupla de silêncio pelas suas narinas delicadas, mas barulhentas. Destacou um pedaço de sua lógica. Quebrou um detalhe do vitral da racionalidade que aos poucos foi cedendo espaço a uma luz. Uma luz roxa, tensa e inebriante que cercou sua consciência enquanto ela pôde, misticamente, se ausentar de si.

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