
Musculaturas de partes aleatórias de seu corpo e, até mesmo,
algumas outras não conhecidas foram acionadas no intuito de puxar suas
pálpebras para cima. Os cílios, anteriormente trançados entre si em um trabalho
quase artesanal de tramas que durou toda a madrugada e boa parte da manhã
enquanto dormia, finalmente se desatavam penosamente em resposta a agitação
muscular que expressava um desejo poderoso pela lucidez do despertar. A
circunferência de sua pupila, quando entrou em contato com a atmosfera, ainda
escondia uma parte majoritária de sua íris intimidada pela escuridão de seu
sono. Suas têmporas latejavam e guerreavam com as tentativas voluntárias de seu
corpo em acordar. Empurravam as pálpebras para baixo, amarravam os nós dos
cílios ainda mais, selavam essa combinação com a secreção ocular que escorre
dali durante a noite. Uma luta entre os processos conscientes e inconscientes
de si mesma. Ela guerreava contra si e girava lentamente. Girava lentamente,
mas girava. Escorregava um de seus ombros para baixo de suas costas e projetava
o corpo de modo a terminar a volta pondo-se de bruços em um processo
interminável. Ao desistir dos rodopios, suas narinas estavam sufocadas entre a
aspereza dos fios de seu cabelo e a maciez do algodão da fronha de seu travesseiro
que serviu de campo de batalha para a noite insalubre que seus impulsos
cerebrais a proporcionaram. Não conseguia respirar. Depois de alguns segundos
nada angustiantes, a asfixia obrigou seu corpo a abrir violentamente a sua
boca. Os lábios se desgrudaram e, por um espaço pequeno entre fios de cabelo,
travesseiro e carne, uma grande quantidade de oxigênio foi sugada para
brônquios desesperados com a inanição de uma consciência de si inconsequente,
mas efetiva. A razão do despertar vencera.
Seus olhos se abriram na completude do significado dessa
ação. Mesmo assim, as têmporas ainda insistiam em latejar e tornar todo aquele
processo que já era por si só difícil, ainda pior. Seu braço direito que estava
debaixo de seu tronco, pressionado contra o estômago, conseguiu finalmente
escorregar para fora da cama deixando as pontas dos dedos encostarem
delicadamente no chão empoeirado de seu apartamento que, há tempos, não recebia
uma faxina descente. A limpeza acontecia conforme a necessidade se apresentava.
Sempre aos poucos e dolorosamente ela decidia deixar impecável algum dos
pequenos cômodos de sua moradia. Esforçadamente a poeira se levantava de um
lugar viajava atmosfericamente e pousava em algum canto menos perturbador. A
possibilidade de uma faxina completa que revirasse a mobília e olhasse de perto
as sujeiras encalacradas por entre pequenos espaços sem utilidade daquele
apartamento minúsculo, simplesmente, não existia. Em nenhum momento, passou por
sua cabeça, agora dolorida, que um dia sua casa pudesse estar purificada. Ela
se confundia entre admirar-se por conseguir sobreviver no imundo ou enojada de
si mesma pela falta de coragem de encarar a sujeira.
Começou a jogar seu corpo na direção de seu braço que já
tinha saído da cama. O peso de todo o corpo foi caindo por sobre os dedos que
agora não mais tocavam o chão mas estavam sendo empurrados contra ele de modo a
revitalizar os músculos do membro superior. Conforme o tronco se despejava em
cima do braço, o esquerdo também teve que entrar abruptamente em ação para que
ela não caísse de cabeça no chão. Com os dois braços contraídos e segurando a
massa sem vida de seu corpo ainda adormecido, o pescoço foi automaticamente
despejado do travesseiro e passou para uma posição em que os olhos abertos
podiam enxergar por baixo da cama. Seu cabelo sentiu a força da gravidade e
cedeu. Tocou também a poeira do chão e pareceu se amalgamar a ela. A poeira
parecia ser pesada, de certa forma, puxava o cabelo e, até mesmo, o sangue dela
para baixo. Subitamente, suas pernas nuas chegaram ao piso de tacos de madeira
numa estrondosa e levemente dolorida queda. A perna direita emitiu um som de
tambor ao bater no chão e, com alguns décimos de segundo atrasados, a perna
esquerda caiu por sobre a direita no convencional estralo ardido que o contato
entre dois corpos revestidos da derme humana costumam fazer.
Não desistiu da batalha por estar deitada no chão. Alguns
de seus músculos mais insistentes ainda lutavam para mantê-la minimamente
firme. Seu tronco estava, agora, sustentado pelos braços. A camiseta de um
antigo namorado – que já ficava grande nele – era a única peça de roupa que
usava para dormir há semanas. Gostava do cheiro de velho, de gente e de sujo
daquilo. Aproximou seus joelhos e cotovelos como se eles tentassem se encontrar
num ponto central que poderia estar alinhado a seu umbigo. Sentiu seus seios
pendularem e depois comprimirem-se entre seus braços. Em um movimento brusco,
seu pé renasceu e se jogou para frente. Fez-se um primeiro centro de
sustentação para um corpo que parecia querer tornar-se um só com o chão. O
outro pé veio logo em seguida e, assim, ela se levantou. Recuperou sua
humanidade. Pelo menos, momentaneamente.
Essa constatação arrepiou os pelos de todo o seu corpo. A
consequência do despertar se tornou um renascer e ela se arrepiou. Sentia o
eriçar de desde os delicados pelos da perna – passando pelos agressivos fios da
virilha – até os grosseiros fios de cabelo. Seu cabelo. Da raiz as pontas, eles
pareciam estar recheados de nervos. Vivia o cabelo, era o cabelo e o cabelo a
amedrontava. O cabelo estava fora de controle. Ele tinha vida também. A bagunça
que ele formou em sua cabeça, os incontroláveis nós que seus fios emaranhavam,
tudo aquilo parecia não pertencer a ela mas, ao mesmo tempo, fazer parte dela.
Olhava para ele e seu medo transformava-se gradativa e suavemente em raiva. Os
conhecidos fios negros se tornavam estranhos para ela toda a manhã. Eles tinham
sempre sido rebeldes. O arrepio que sentia naquele momento era erótico e
pulsante, – mesmo naquele calor extasiante, ou talvez, até mesmo, por causa
dele é que isso acontecia. Sentia no couro de sua cabeça ligações incontáveis
com pequenos monstros conscientes e vivos. Tinha asco. Coisa que não costumava
sentir com frequência. Pelo contrário, a sujeira, a imundice parecia fazer
parte dela, mas aquele cabelo tinha se superado. Não chegava a estar feio, na
realidade, ele a encantava. Seus nós eram quase invisíveis, mas eram táteis.
Ela sentia o caos operar monstruosamente por debaixo de lustrosas mechas
superficiais.
Uma luta rotineira começava naquele momento. Diariamente, o
desembaraço dos cabelos tomava um tempo considerável de sua manhã. Ela sentou
num banquinho que mantinha no minúsculo banheiro de seu apartamento. Ele ficava
de frente a um espelho que não era fixo, estava apenas apoiado na parede. Ela
conseguia enxergar seu corpo todo. Suas pernas sedosas recobertas por uma
camada sutil de curtos e macios pelos dourados, quase invisíveis, encostavam no
algodão podre daquela camiseta malcheirosa. Com um pé em cima do assento e
embaixo de sua outra perna, ela segurou uma escova antiga que pertencia ao seu
avô. As cerdas eram pretas e brilhantes. Duras, elas ficavam cravadas numa
superfície macia e bege sustentada por uma haste de plástico na cor de um vinho
sangrento. Ela passeava pelas espaçosas ondas de suas madeixas e arrancava
penosamente diversos fios nesse caminho. Era preciso segurar mechas vez ou
outra para não fazer as raízes – que ainda sentiam, suavemente, aquele arrepio
– doerem e darem a impressão de estarem vomitando comprimento para fios já
muito longos. Os espasmos de dor percorriam o fio todo até a raiz onde ela se
concentrava. Seu couro cabeludo latejava durante aquele processo. Sentia o
coração pulsar onde os cabelos nasciam com tanta força que achava que o próprio
cabelo é que era responsável pela circulação do sangue no corpo todo. De
repente, a tarefa árdua do desembaraço tornou o cabelo o centro vital daquele
ser. Toda a sua energia física e psíquica estava concentrada em pentear aquela
selva fechada.
O ar entrava por suas narinas e estufava seus pulmões com
oxigênio. Ela inspirava fundo e com força vez ou outra, como quem está
praticando uma atividade física e só lembra que precisa respirar quando está
prestes a desmaiar. Conforme o pente explorava a brutalidade de seu cabelo, ela
sentia que a tarefa se tornava lentamente menos difícil, porém, não menos
embriagante. Ela estava completamente hipnotizada pela atividade. Não sabia que
horas eram, tinha perdido a noção de espaço e tempo. O pé que tinha colocado
embaixo de sua perna estava sem receber nenhum fluxo sanguíneo há tanto tempo
que não conseguia mais senti-lo. Era um peso morto e desequilibrado quando saiu
da posição em que estava. Ela decidiu trocar de posição de forma a catapultar
com mais eficácia o seu movimento braçal em cima de seu cabelo. Abriu as pernas
em frente aquele espelho e nem por um segundo prestou atenção a outra parte de
seu corpo que não fossem os fios embaraçados. O último impulso foi tão forte
que a escova se escapou de suas mãos e caiu no chão. Aproveitou que teria que
levantar do banquinho de qualquer forma e foi até o guarda roupa do quarto
devolver aquela camiseta que só estava atrapalhando e ficando cada vez mais
suja. Estava nua.
Nua e sozinha, ela recomeçou aquele processo. Pegou a
escova do chão e iniciou os movimentos bruscos contra seu cabelo que agora já
não mais oferecia nenhuma resistência. As cerdas simplesmente dançavam por
entre fios de cabelo que continuavam vivos, ou talvez até mais vivos que antes,
mas desembaraçados como nunca. A sensação era que depois daquilo tudo, seu
cabelo nunca mais voltaria a formar nós. A escova caiu novamente no chão, mas,
dessa vez, a perplexidade que enfraqueceu suas mãos. Não conseguia acreditar
que aquela batalha tinha sido vencida. Sentou-se no banquinho e olhou para seus
próprios olhos no espelho. Entornados pela sua moldura capilar, eles a
consumiam. Olhou profundamente para seus olhos e encontrou no fundo deles um
nada. Estava tão cansada que se escaparam não só os nós, mas também as forças e
a vitalidade. Morreu de olhos abertos por alguns momentos em que seus dedos se
entrelaçavam nos seus fios de cabelo que pareciam mais grossos, lisos e
brilhantes do que nunca. Mesmo tendo parado de pentear, as raízes ainda
latejavam fortemente. Na realidade, agora que parara, a dor intensificara-se.
Ela tentava se anestesiar com aquele olhar profundo, mas não aguentou mais de
trinta segundos fazendo aquilo. Inconscientemente seus olhos se desviaram para
as raízes de seu cabelo refletidas no espelho. Elas pareciam estranhamente
agitadas. Aquelas ondas de calor que distorcem a imagem de desertos escaldantes
pareciam estar concentradas naquela região de sua cabeça. Não só sentia a dor,
que já estava se tornando, de certa forma, prazerosa, mas também via o
inexplicável: seu cabelo crescia diante de seus olhos.
PARA LER OUVINDO:
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